terça-feira, 9 de abril de 2019

A Potência transformadora do 'Caboclo de Arthur Scovino'

Arthur Scovino https://arthurscovino.wordpress.com/




Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.14 Lisboa jun. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS
ORIGINAL ARTICLES
A Potência transformadora do 'Caboclo de Arthur Scovino'
The power of change of 'Caboclo', from Arthur Scovino

Orlando Maneschy*
*Brasil, artista visual, curador e professor. Membro do Conselho Edtorial.
AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Pará, Instituto de Ciências da Arte, Programa de Pós-Graduação em Artes. Av. Presidente Vargas, S/N, Praça da República – Belém – Pará, CEP: 66017-060, Brasil.

Endereço para correspondência

RESUMO:
Este artigo apresenta a produção do artista brasileiro Arthur Scovino, que vem articulando projetos em que arte e cultura brasileira são ativadas enquanto deflagradores para processos para a performance, constituindo um projeto artístico complexo e sensível, em pleno diálogo com matrizes culturais do povo brasileiro.
Palavras-chave: performance, brasilidade, transcendência.


ABSTRACT:
This paper presents the production of Brazilian artist Arthur Scovino, which has been articulating projects where art and Brazilian culture are activated as triggers for processes for performance, making an art project complex and sensitive, in the dialogue with cultural matrices of the Brazilian people.
Keywords: performance, Brazilianness, transcendence.

Introdução
Este artigo pretende articular acerca da produção de Arthur Scovino, (São Gonçalo, Rio de Janeiro, 1980), artista que conheci durante o Festival Performance Arte Brasil (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2011), evento no qual Scovino comparecera como público. Naquela época, seu trabalho encontrava-se em gestação ainda, mas podia-se já perceber o envolvimento e a sensibilidade de um artista que estava em elaboração, prestes a revelar seus processos e ideias com suas proposições performativas. Ficamos amigos e não passado muito tempo pude ver, com imenso prazer, seu primeiro trabalho com o qual tornou-se conhecido: Levando os elepês de Gal para passear … (2011), a ação, que nascia sobre uma reflexão acerca da história da música brasileira, deflagrou uma reativação de discussões sobre discos e sobre a obra da cantora, um dos ícones do movimento da Tropicália, por meio da re-inserção dos "Lps" (discos de vinil Long Plays) na paisagem da cidade, o que já apontava para a complexidade que viria se instalar em seus trabalhos. Aqui, não apenas o artista se apropriou dos discos da musa baiana Gal Costa e levou-os para passear em cortejo performático pelos espaços da cidade de Salvador, onde o reside, mas propiciou uma série de discussões sobre arte e cultura, em um trabalho que se estendeu da performance para instalações.
Passei a levar os elepês de Gal para passear comigo, para que respirem novamente os ares das ruas onde, em outros tempos, transitavam das lojas para as casas, das casas para as festas, para outras casas, escolas... Além da arte e da performance, confesso que essa ação consiste basicamente em algo que não cabe em mim sozinho e por isso divido, tornando-me exposição ambulante pelas ruas das cidades e convidando as pessoas para interAÇÕES originais onde quer que estejam e sem manual de instruções. A ação terminou quando a musa lançou seu disco "recanto" em dezembro de 2011. (Scovino, 2012)
Scovino, ao realizar uma ação de deslocamento dos "Lps", ao os reinserir no espaço da cidade de Salvador, em praças, pontos turísticos, bem como cinemas, bares, e festas, reavivava relações entre música, imagem e a cidade, percebendo um conjunto de valores histórico-culturais da produção artística de Gal Costa para aquela cidade (Figura 1Figura 2). "Sem manual de instruções", como afirma o artista, essa performance era um convite ao outro para que se relacionasse também, levando seus "Lps" para "passear", ou fazendo uma foto, ou performando da maneira que desejasse, por meio de textos, fotos, encontros, vivências. O trabalho adquiriu, ainda, um certo caráter de cortejo, de procissão, quando o artista, junto com amigos, convidados e participantes anônimos seguiam em grupo pela urbe. Ali o sagrado e o profano mesclam-se, tendo Gal como símbolo de toda uma geração de artistas que fizeram parte do movimento da Tropicália, e que Scovino quer chamar atenção. São camadas e possibilidades, presentes não apenas no que se vê, mas nas conversas e memórias trocadas. E o trabalho se abriu em várias perspectivas e montagens, como na ação que o artista realiza com o "Lp" dentro do mar, mergulhando junto com o disco, interagindo com este, com a imagem de Gal, constituindo mais um momento de poesia dentro do projeto. Em Levando os elepês de Gal para passear … já podemos ver toda uma relação lisérgica com a vida que irá se intensificar e consolidar em seus projetos subsequentes.




A partir daí, diversas proposições artísticas serão empreendidas, mas destacaremos a Casa de Caboclo, projeto ao qual convergem diversos trabalhos e experiências do artista, já que em sua própria casa inúmeras experiências foram engendradas e, de certa forma, com este projeto irá transportá-las para o espaço expositivo. Ali, com a naturalidade com a qual encara a vida e sua delicadeza irá imbricar objetos, imagens, documentos e seus processos vivenciais em um ambiente aberto a experimentação e a performatividade (Figura 3Figura 4). Assim, podemos encontrar o nascimentos de borboletas em sua casa e sua relação com estas, documentados em fotografias, até procedimentos ritualísticos do Caboclo SamambaiaCaboclo Pena Rosa ou o Caboclo dos Aflitosetc., como nos afirma um dos curadores da 31a Bienal de São Paulo (2014), Pablo Lafuente:
A simplicidade de articulação, tratamento e meios caracteriza Casa de caboclo, de Arthur Scovino: um ambiente em constante mudança que poderia ser tanto um espaço doméstico quanto cerimonial, em que um conjunto de imagens (desenhos, fotos e escritos) e ferramentas (livros, gases e líquidos) é reunido para auxiliar um encontro, que acontecerá dentro desse próprio ambiente. 
A força de determinação e a convicção são também essenciais à obra, e se traduzem em uma ocupação permanente desse espaço por Scovino, o artista como caboclo, que, com confiança, mas também modéstia, estabelece uma situação na qual o inesperado pode acontecer (acontecerá) em estreita relação com o visitante. 
O caboclo e sua casa funcionam como metáfora para o que o espaço da arte pode ser e fazer e também como uma superação de suas premissas e limitações. Juntos, eles nos permitem perceber que certos objetos, em condições específicas, podem nos afetar, que podemos nos envolver em uma troca significativa com eles e com o espaço que habitam. (Lafuente, 2014).



São acontecimentos em que a força do caboclo, do sincretismo religioso, da umbanda são convocados pelo artista. O primeiro dos caboclos invocados pelo artista, Nhanderudson funde-se mestiço, por meio do olhar sagaz de Scovino, que faz citação a modos de mestiçagem de nomes, muito comum em diversas camadas sociais brasileiras, daí nasce o Nhanderudson, (Nhanderu, que em tupi, é o deus de toda a criação, com o nome em inglês Hudson), com ironia fina acerca de como organizamos nossas relações culturais, o artista joga, investe-se de Nhanderudson, usa o nome como alcunha, para também brincar. Mas o Nhanderudson é caboclo forte, "virado", nascido da antropofagia, rápido como uma flecha, que "virá numa velocidade estonteante"... O artista conversa com este caboclo também por meio da letra da música Um Índio, do baiano Caetano Veloso, que toma como potência para pensar... para se abastecer de novas imagens telúricas, cheias de energia... Se Nhanderudson, vinha "mais avançado que as mais avançadas das tecnologias", hoje Scovino o busca no centro do Brasil, no local que percebe como coração da América do Sul... "num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico", como sugere a música de Caetano; lá, Scovino tem desenvolvido várias propostas artísticas (Figura 5Figura 6Figura 7).






Ritualístico e arguto, Scovino dialoga com várias expressões da cultura; na performance do Oráculo Caboclo, utiliza-se como "base" o livro O Guarani, de José de Alencar, que traz uma imagem do bom selvagem, já mestiça enquanto construção idealizada, para no "meio" empregar o livro Encontros / Helio Oiticica, com várias entrevistas do artista brasileiro e, por cima destas publicações, repousar um "pau-de-resposta", empregado em rituais xamânicos. Diante desses elementos, conta ainda com uma cachaça feita por ele mesmo e de uma máquina de escrever, recursos empregados no processo do Oráculo, como nos explica: "Consulto o Oráculo para refletir sobre uma questão ou mesmo responder uma pergunta minha ou de alguma pessoa."
Permeáveis, seus caboclos aparecem ora aqui, ora acolá, como o Caboclo Samambaia, entidade existente no sincretismo brasileiro, que emerge na obra de Scovino como uma mistura da foto do artista com samambaia e textos datilografados pelo próprio, como o "ponto", o cântico de chamamento da entidade, escritos no sistema do oráculo; já o Caboclo Pena Rosa nasceu de um sonho. "Estava numa mata e fazia pedidos de questões emocionais, amorosas, e caiam penas cor de rosa do céu", esclarece Scovino. Assim nasce o trabalho e o ritual do Caboclo Pena Rosa: Abrir um baú lotado dessas penas e lança-las ao ar, nesse simples, intenso e fugaz gesto prenhe de alegria libertadora; já o Caboclo dos Aflitos lança-se ao ar, com seu arco e flecha imaginários em pontos da cidade, e remonta a diversas representações de índios, em esculturas presentes nas paisagens de tantas cidades, mas que Scovino desmonta novamente... É a força do ato que nos reafirma, no pequeno gesto do salto que dura alguns segundos, mas que irradia como a faísca de um cometa, ou como o Caboclo Meio-Dia, que surge com sol das 12h! Sobre eles, o artista irá afirmar:
São Aparições com ou sem hora marcada. Pode entrar em performance. Ou fotografia. Ou vídeo. Ou desenho... As aparições do caboclo são espontâneas ou provocadas. Surgem nos encontros, cheiros, imagens... Tem cachaça na história. 
Ele passa por um caminho de poesia. Às vezes traz borboletas, outras vezes chove. O caboclo respinga no corpo, mas surge da alma. Vem inteiro ou aos pedaços. Sereno ou furioso. (Scovino, 2015: 96)
A força da obra de Arthur Scovino encontra-se em uma simplicidade com a qual encara a vida, mas imbuída da firmeza do índio, do caboclo, daquele que se relaciona com a natureza e se imana de sua energia (Figura 8Figura 9Figura 10). Guerreiro, soube observar a força da mudança da vida, que está em constante movimento, (como nas crisálidas transformando-se em borboletas em sua casa), e absorveu essa potência para sua arte-vida, com sabedoria, na busca daquilo que crê, construindo uma vida regeneradora. Na Casa de Caboclo o artista convida-nos a vivências, com a delicadeza que lhe é própria, seja a de lançar penas rosas ao ar (performance do Caboclo Pena Rosa) e sentir a alegria desse mínimo gesto fugidio, como poder restaurador, seja no fruir pelo espaço e relaxar ouvindo uma das canções de Gal Costa, ou ainda compartilhar com ele de algum ritual. Scovino nos conclama a pensar como desejamos conduzir nossa própria vida por meio da transformação que estabeleceu em sua própria existência (Figura 11).












Referências
Lafuente, Pablo. (2014) Casa de Caboclo. Disponível em URL: http://www.31bienal.org.br/pt/post/1594        [ Links ]
Scovino, Arthur (2015) "Caboclo dos Aflitos." Harper's Bazaar Art, Abril, N.4, p.96.         [ Links ]
Scovino, Arthur. (2012) Levando os elepês de Gal para passear.... Disponível em URL: http://elepesdegal.blogspot.pt        [ Links ]

Artigo completo recebido a 30 de dezembro de 2015 e aprovado a 10 de janeiro de 2016


Correio eletrónico: orlandomaneschy@gmail.com (Orlando Maneschy)

http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1647-61582016000200018

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